Memória é destaque do curso de Medicina da Unochapecó

Coordenação de Medicina entrevista Karim Nader, autoridade mundial sobre reconsolidação da memória

17/02/2020
Por: Ricardo Sachser
Karim Nader, Departament of Psychology, McGill University, Montreal

Você já ouviu falar em reconsolidação da memória e suas aplicações na clínica psicológica e psiquiátrica? Em 2020 a Unochapecó passa a integrar um seleto grupo de Universidades do país a investir na exploração do tema a partir de estudos com modelos animais em orientações de trabalhos de conclusão de curso. E para esclarecer os principais assuntos relacionados à teoria da reconsolidação, por intermédio dos docentes do curso de Medicina, Ricardo Sachser e Mayra Zancanaro, o Prof. Karim Nader, principal autoridade mundial no assunto, concedeu entrevista exclusiva via email.

 

Karim Nader é psicólogo e obteve seu doutorado na University of Toronto em 1996. Após seu pós-doutoramento na New York University, onde trabalhou sob a supervisão de Joseph LeDoux, obteve sua atual posição como professor do Department of Psychology da McGill University, em Montreal. Desde então recebeu diversos prêmios acadêmicos, dentre eles sendo nomeado para o “Canadian Top 40 under 40” em 2005, assim como para o “Who’s Who?” em 2010. Além de contribuir no desenvolvimento de novas terapias para os transtornos da ansiedade, particularmente para o transtorno de estresse pós-traumático, o trabalho pioneiro de Nader inspirou o filme "Eterno Brilho de uma Mente sem Lembranças", em 2004. Suas descobertas desafiaram a teoria da consolidação da memória – dominante até o início dos anos 2000 – quando acreditava-se que as memórias uma vez consolidadas permaneceriam permanentemente “estáveis” no encéfalo. Hoje, devido modernos avanços em técnicas de optogenética, microscopia eletrônica e psicofarmacologia, tornou-se possível induzir o esquecimento de memórias traumáticas mediante sua reativação tanto em humanos quanto em modelos animais.

 

Na Unochapecó, os trabalhos sobre reconsolidação da memória estão sendo conduzidos pelas alunas do 7º período do curso de Medicina, Ismaiara Báo e Thaís Westerich Izotton sob supervisão de Ricardo e Mayra em parceria com o Prof. Johnatan Lee da University of Birmingham, da Inglaterra.

 

Com tradução e revisão de Sachser e Fernanda Lotz (mestranda em Neurociências pela UFRGS), confira abaixo a entrevista na íntegra.

 

1) Em termos gerais, como é definida a reconsolidação da memória?

Define-se explicitamente como um processo dependente de tempo, no qual uma memória que anteriormente havia sido “estabilizada” no cérebro se torna “instável” (ou desestabilizada) quando reativada; então, leva algumas horas (aproximadamente 6 horas) para ser re-estabilizada (ou reconsolidada). Durante esse período de maleabilidade sináptica, quando a memória estiver em um estado instável (após a reativação), ela pode ser bloqueada, fortalecida ou alterada (por exemplo, induzindo seu esquecimendo).

 

2) Quando esse fenômeno foi descrito pela primeira vez, e qual foi sua maior contribuição no ano 2000?

Os dois primeiros artigos claros descrevendo essa alteração de um estado estável para um estado instável quando a memória era reativada são mencionados abaixo:

  • Misanin, J. R., et al. (1968). "Retrograde amnesia produced by electroconvulsive shock after reactivation of a consolidated memory trace." Science 160: 203-204.
  • Schneider, A. M. and W. Sherman (1968). "Amnesia: a function of the temporal relation of footshock to electroconvulsive shock." Science 159: 219-221.

Lewis foi quem desenvolveu a primeira teoria que explica estas descobertas. Veja abaixo:

  • Lewis, D. J. (1979). "Psychobiology of active and inactive memory." Psychol Bul 86 (5): 1054-1083.

O primeiro artigo chamando esse efeito de reconsolidação foi nosso manuscrito. Este estudo foi o primeiro a testar se a memória reativada agia como novas memórias. Por exemplo, uma característica definidora das novas memórias é que, se a consolidação for bloqueada, a memória de curto prazo ficará intacta, mas a memória de longo prazo será prejudicada. Esta também é uma característica da reconsolidação. Com esta abordagem, nosso estudo demonstrou a existência da reconsolidação com as mesmas linhas de evidência que apoiam a consolidação.

  • Nader, K., et al. (2000). "Fear memories require protein synthesis in the amygdala for reconsolidation after retrieval." Nature 406 (6797): 722-726.

 

3) A reconsolidação ocorre em humanos? Quais são as principais aplicações clínicas nas áreas de Psicologia e Psiquiatria?

Todas as sinapses no cérebro estão sujeitas à processos de plasticidade sináptica e, portanto, sujeitas à processos semelhantes à reconsolidação. O fato é que as fases da memória e os mecanismos de plasticidade estão conectados, e sinapses disfuncionais contribuem para inúmeros distúrbios. A descoberta de que memórias consolidadas retornam a um estado lábil e precisam ser reconsolidadas têm uma importante aplicação clínica para um grande número de doenças mentais, como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), dependência química, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), além de delírios/alucinações. Um entendimento dos mecanismos que medeiam a reconsolidação pode fornecer a base para o desenvolvimento de novas ou refinadas ferramentas terapêuticas para manejar com êxito, se não curar, algumas dessas condições. Como um exemplo de como isso poderia ser aplicado na prática clínica, imagine um paciente com TEPT cujos sintomas são resistentes à psicoterapia e medicações. Uma nova maneira de tratar esta condição poderia ser reativar a memória traumática do paciente e bloquear sua reconsolidação. Teoricamente, isso deve levar à “cura” dentro de uma única sessão. Embora encontrar uma cura na remoção de uma memória em uma única sessão possa parecer digno de ficção científica, estudos iniciais em humanos usando eletroconvulsoterapia (ECT) demonstram que essa possibilidade é, sim, compatível com a vida real.

Franks e colaboradores (Rubin et al 1969) trataram pacientes que sofriam de alucinações, delírios, depressão maior ou TOC. Em contraste com outros estudos que utilizavam da ECT quando os pacientes estavam anestesiados, Rubin e colegas mantiveram os pacientes acordados e os orientaram a se concentrarem nos objetos de suas compulsões ou alucinações. Este procedimento experimental reativava os mecanismos neurais responsáveis por mediarem estas memórias quando a ECT era administrada. Todos os indivíduos foram declarados "curados" de sua condição, mesmo que alguns tivessem feito até 30 tratamentos anteriores de ECT sob anestesia. A maioria permaneceu sem sintomas no período de 2 anos entre o tratamento e a publicação do estudo. Assim, o fato da ECT ser efetiva apenas quando as memórias eram reativadas, mas não quando a reativação da memória era omitida (por exemplo, quando o paciente era anestesiado) sugere, em princípio, que a reconsolidação ocorre em humanos.  Além do mais, este estudo fornece evidências de que a possibilidade de curar alguém removendo uma memória em uma única sessão pode não ser tão remota.

  • Rubin, R. D., et al. (1969). New Application of ECT. Advances in Behavior Therapy, 1968. R. D. Rubin and C. Franks. New York, Academic Press: 37-44.

 

4) Você considera a reconsolidação como uma técnica da terapia cognitivo-comportamental (TCC)?

Não, a TCC funciona como a extinção. Nós sabemos que a memória de extinção é muito “fraca”. A memória de extinção se “renova” a cada mudança de contexto e com o passar do tempo. Já as modificações obtidas no processo de reconsolidação são todas muito duradouras (por exemplo, a “porcentagem” de amnésia nunca muda). O grande desenvolvimento da atualização da memória promovida pela reconsolidação utilizando abordagens não-farmacológicas é clinicamente ideal, pois pode ser personalizado para todas as psicopatologias. Talvez essa intervenção possa melhorar todas as psicopatologias aqui listadas.

 

5) Em quais situações o fenômeno da reconsolidação pode não ocorrer?

Todas as leis da biologia possuem exceções. Existem restrições bem descritas sobre consolidação e reconsolidação. Os parâmetros identificados incluem memórias extremas de medo ou memórias muito antigas/remotas. Por exemplo, pela primeira vez, o pós-doutorando brasileiro Josué Haubrich identificou os mecanismos biológicos que podem ativar ou desativar essas restrições depois que elas foram estabelecidas. Em resumo, a principal implicação clínica é que a reconsolidação sempre pode ser utilizada como estratégia terapêutica para todas as psicopatologias aqui mencionadas.

 

6) Na sua visão, quais são os próximos passos da pesquisa translacional sobre reconsolidação?

Nós estamos tentando definir quais os estados psicológicos/sociais que aumentam a habilidade da memória de passar pelo processo de reconsolidação. Por exemplo, nós acreditamos que estressores que causam a recaída na dependência às drogas, como a excitação emocional, medo ou ansiedade, podem desencadear a reconsolidação das memórias associadas às drogas. Isso é baseado na literatura animal e envolve “outputs” da amígdala (estrutura cerebral envolvida na modulação das emoções). Estamos agora investigando se os estressores sociais como falar em público devem fazer com que as memórias resistentes à reconsolidação retornem a um estado mais maleável para depois serem reconsolidadas em fumantes. 

 

*Alguns termos foram modificados para melhor compreensão do texto. Aos interessados, a entrevista em inglês pode ser solicitada via email: ricardo.sachser@unochapeco.edu.br

**Contribuiu: Prof. Dr. Josué Haubrich, pós-doutorando do Department of Psychology da McGill University, orientando de Nader. 

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